Veneza é um sentimento
Texto: Marjorie Madruga, procuradora do Estado, nascida e moradora em Natal, RN – que também é, quando brilha o sol e se está diante do mar, uma “felizcidade”.
Foto: Erich Ettensperger
Desde o primeiríssimo instante que meus olhos encontraram Veneza – ainda saindo da estação de trem – senti um arrebatamento, uma emoção inexprimível, uma falta de ar. E uma vontade imensa de chorar. E chorei. Fui atacada pela “Síndrome de Stendhal”, todos os dias naquela terra de sonho. É beleza em excesso para um só coração e, infelizmente, temos apenas um. Haverá algo mais belo? Mais inusitado? Mais especial e único?
Veneza é mais que uma città. É um sentimento que exige, como o amor, todos os sentidos. Uma città para mudar a nossa vida, assim como os grandes amores. Veneza é um exemplo de permanência, ainda que possua um ar de fragilidade. Uma combinação harmônica, mágica e fatal de beleza, valor histórico, arte, romantismo, sedução.
Cada cidade certamente tem um cheiro e um som próprio. A música de Veneza é composta do som das águas, dos passos, vozes e sinos tocando. Solamente. Veneza não é apenas uma città única. É uma experiência emocional única. Uma città dentro do mar, criando caminhos d’água e uma rotina de vida anfíbia. Como não ser meio anfíbio alí? Como, vivendo há anos na água, não se ter guelras e escamas? Veneza casou com o Mar. Casamento que anualmente é lembrado numa cerimônia solene, quando seus habitantes voltam às águas do Adriático, procuram bancos de areia – origem da construção da cidade – e lançam sobre suas ondas não mais pedras ou blocos de argila, mas alianças e alianças, que reafirmam o casamento e o amor que alí se inaugurou há 1.500 anos.
É estranho olhar seus habitantes exercendo hábitos banais e cotidianos. Mas há em todos os venezianos uma relação de amor, e também de ódio – segundo me disseram – com a città. Penso que quem aqui viveu toda a vida não pode ser igual aos demais mortais. Não é possível. Veneza impõe reverência e solenidade. Sentia-me sempre andando de joelhos. Lentamente, contemplativamente, silenciosamente. Prendendo a respiração. Porque ela impõe silêncio, contemplação, devoção, entrega. Veneza nasceu de uma quimera, e suas origens realçam sua vocação para o sonho e sua atmosfera irreal. Em que tempo se vive alí? Tudo alí arranca suspiros – La Città dei Sospiri. Não é uma città para a contemporaneidade. Talvez por isto seus jovens partam, buscando o futuro. Ou será o espírito de seus navegadores, sempre em busca de aventuras, ousadias, novos mundos, novos desafios, que os inspiram? Seguramente Veneza não seria a mesma sem eles. O espírito destes a fez. E fico pensando neste espírito de aventura, de desbravamento de seus navegadores, que queriam trazer o mundo para Veneza.
Veneza foi ao Oriente e enfeitou-se, para enfeitiçar. É uma città profundamente feminina. Bela e sensual. E misteriosa. Talvez a mais feminina de todas as cidades. Mas tudo que trouxe do Oriente – especiarias, perfumes, sedas, veludos, pedras preciosas, arquitetura – assimilou com personalidade e originalidade. E depois parou. Há 500 anos. Obra perfeita que é. Esplêndida e irreal.
Alí todos os ângulos são belos. E se vê além do visível. A cidade fascina pela convivência da arquitetura árabe – imponente e rica – contrastando com a simplicidade das casinhas italianas; pelo luxo dos interiores barrocos, pelas janelas floridas e velhas roupas estendidas – acenando adeuses ou boas vindas?
É uma cittá que desperta o sagrado e o profano – St. Marco, St.Salute/ Carnaval, Casanova. É poesia. Um poema curto e profundo. Emocional e não racional, mas que não abre mão da forma. Uma città de caminhos labirínticos como o amor. Perde-se sempre, ainda que com mapas. Mas existem mapas para o amor?
Veneza exige alma – e corpo, a completude. Exige mais coração que cabeça . Veneza vive numa “era” que não mais existe. Não digo que não seja uma città triste. Mas ela imprime calma, paz, quietude… É uma città silêncio. È uma città para ser vivida a dois. É romântica demais para um. Potencializa qualquer solidão. O silêncio, a beleza, o romantismo que está impregnado alí pede acasalamento.
Subitamente senti-me profundamente íntima de tudo ali. Par a passo com uma certa melancolia, como se tivesse perdido algo ali. Tive um sentimento de perda…O que perdi?
Descobri uma Veneza de “campos” – como os venezianos chamam suas praças -, com árvores, crianças jogando bola, velhos sentados nos bancos e pais brincando com seus filhos. Uma Veneza um pouco estranha para a imagem fabricada e cultivada que existe em cada um de nós , que consiste em uma Veneza de águas, gôndolas e becos estreitos. Aliás, estes becos são, em todos os sentidos, becos de perdição….Em alguns deles se perdeu Dirk Bogart, borrou aflito a maquiagem na busca desesperada pela beleza inatingível de Tadzio no belo Morte em Veneza.
Eles ritmam, também, a vida tranqüila, sem pressa. Não é a toa que é conhecida como La Sereníssima.
Não existem referências para se conhecer Veneza. Sempre se chegará lá em estado “bruto”, despreparado para sua beleza estonteante. É uma terra do além. Quando o vaporeto partiu no meu primeiro dia , no meio das brumas, pensei que estivesse adentrando em um sonho…
Se um dia me perguntarem quando entrei em “êxtase de beleza”, responderei seguramente: em VENEZA.
Como, depois de Veneza, habituar os olhos às cidades comuns?”
Para conhecer mais sobre Veneza, clique aqui.